{insônia}

insônia

Photo by Kelli Tungay Photo by Krista Mangulsone

insônia (in..ni:a) s.f.

  1. Grande dificuldade em conciliar o sono; vigília.

 

acordo confusa e arredia. são três horas da manhã. por dentro, faz escuro como por fora. respiro fundo, sonoramente, tentando perceber onde nasce e onde morre o ar para deduzir, assim, o limite entre o quarto e mim. presto atenção em tudo que adormece enquanto eu desperto. como se estivesse sonhando ao contrário. talvez esteja.

a noite é fria. bate um vento gelado, pontiagudo, de um azul estranho que só vejo quando fecho os olhos. as luzes da torre dançam monótonas na parede e eu decido que preciso inventar uma melodia horrível para acolhê-las. esqueço e começo de novo. esqueço e começo de novo. será que sonhei? entra, infiltrado e agressivo, o cheiro noturno de uma cidade inteira em silêncio. ele balança com violência as folhas do abacateiro que minha mãe um dia plantou distraída e, como era dela que tudo nascia, ele brotou destemido e cresceu até o teto e eu nunca mais consegui desapegar porque nele deposito toda a força da minha saudade antes de dormir. acho que é isso: amor e desespero. talvez a melodia possa ser essa. começo de novo. sinto calor e frio. não há consenso possível no peito durante a madrugada. bate o vento, me cubro. quantas vezes, em noites enfurecidas como esta, tive que recolher o abacateiro caído, tão pouco selvagem, sobre o chão do quarto. tão indefeso. ajoelhar e juntar a terra com a palma das mãos como quem reza para deuses secretos no escuro, afundar suas raízes, abraçar o tronco para erguê-lo em uma valsa bruta. fecho a janela como se repreendesse o mundo lá fora pela falta de delicadeza. me desculpo, deito de novo de olhos abertos, cansada e atenta. tateio a mesa de cabeceira procurando um copo de água mas encontro apenas um livro que penso em ler mas são quatro horas da manhã e não estou sozinha. eu estou sempre sozinha. os pensamentos vão se enrolando uns nos outros, não sei se sonhei tudo isso. não sei se sonhei hoje. devagar, tento abrir os olhos mas já estão abertos. sinto o peso do meu corpo moldando a cama: afundo devagar como quem morre aos poucos. penso em dormir de novo. penso em acordar. penso que, quando nascer um abacate, ele concentrará o melhor e o pior de mim. procuro contra a luz fraca que entra pela janela fechada o contorno da árvore e a observo dormir tranquila como se não soubesse que viver é arriscado.

{vertigem}

vertigem

im feelin - spiral staircase m.c. escher - relativity exercice de style - diver

vertigem (ver.ti.gem) s.f.

  1. Sensação de instabilidade provocada pela falência do equilíbrio; tonteira.
  2. p.ext. Sensação de desfalecimento, desmaio ou fraqueza.
  3. fig. Grande perturbação dos sentidos; desvario.
  4. Perda momentânea do autocontrole, desejo irresistível; tentação repentina.
  • chegar na beirada de tudo o que você é e olhar para dentro;
  • falar sem ser ouvido;
  • acordar de repente de um sonho em que se despenca;
  • acordar de repente de um sonho em que se amou a pessoa errada;
  • olhar nos olhos de alguém dormindo de olhos abertos;
  • a pele;
  • o cheiro de alguém que já se foi;
  • a escuridão quase absoluta;
  • do alto, encarar o chão;
  • subir um degrau que não existe no final da escada;
  • um descompasso na repetição;
  • uma recordação bem nítida no meio da tarde;
  • uma orquestra no fone de ouvido;
  • a liberdade repentina e tão irrestrita que paralisa;
  • deitar e olhar o céu;
  • os abraços retraídos;
  • os amores implícitos;
  • abismos.

{silêncio}

snow landscape - richard alois

silêncio (si.lên.cio) s.m.

  1. Ausência completa de ruídos; calada.
  2. Estado em que se cala ou se abstém de falar.
  3. Abstenção voluntária de falar, de pronunciar qualquer palavra ou som, de escrever, de manifestar os seus pensamentos.
  4. Taciturnidade.
  5. Interrupção de um ruído qualquer.
  6. Abstenção de publicar qualquer notícia ou fato, de comentar o que é geralmente sabido.
  7. Descanso; estado calmo; estado de paz, de inação.
  8. Interrupção da correspondência epistolar.
  9. Mistério, segredo.

uma onda quebra na pedra, um mosquito voa e bate no vidro, sua própria respiração por dentro, de repente estalar os dedos, o ar-condicionado da sala ao lado, a lembrança da voz de alguém que já morreu e agora soa afogada como um soltar o fôlego embaixo da água opaca do lago. alguém impaciente buzina à espera de uma pessoa que ele já deixou de amar enquanto um homem desce a rua assoviando o fim do dia.

eu, quando exausta, fecho os olhos e escuto. nada na vida é silêncio. uma pomba prende a pata entre os galhos da árvore em frente à minha janela e rege, com o bater desesperado das asas cheias de migalhas, uma pequena rebelião em plena luz do dia. tudo é tão cansativo.

tenho a impressão de que o grande silêncio – aquele que talvez exista dentro da morte ou tenha existido antes de antes de antes de qualquer coisa – é redondo e imensurável, cujo centro é tudo. a gente vive mesmo é nas frestas, os silêncios viscosos e doces e enjoativos e surdos e breves e mornos e etéreos. os seus minúsculos e esparsos fragmentos. o instante entre uma música e outra, pensar em algo rápido antes de mentir, depois de prender o ar e antes de afundar a cabeça inteira na banheira, quando se acorda assustado da queda vazia que é o começo do sono. quando tento alcançar o silêncio, acabo costurando um barulho seco no outro, num emaranhado de sons curtos e abafados, porque o silêncio mesmo é inconcebível. silêncio ou é ou não é. eu só conheço o avesso dele.

{escuro}

escuro

the lunar eclipse - pete ashton dark matter - david spriggs

escuro (es.cu.ro) adj. /s.m.

  1. Em que não há luz; obscuro, sombrio, toldado.
  2. Quase negro.
  3. Monótono, tristonho.
  4. Pouco lícito: negócios escuros.
  5. Que se ouve mal ou se distingue mal.
  6. (s.m.) Recanto sem luz.
  7. Noite.
  8. Escuridão, negrume.
  9. Lugar oculto; recôndito.

escuro, escuro mesmo, é quando não há, no momento exato do escuro, nada mais no mundo além de você e da sua memória das coisas.

é quando anoitece e o mundo vem ventar em seus olhos fechados as sombras de todas as coisas que, desde o primeiro dia, já existiam. as sombras dançam dentro dos olhos, quebram e ecoam seco como o mar cinza em um dia nublado. as sombras viram outras sombras e a noite é eterna.

o escuro é sólido, fosco, denso. o que se vê dele é só a sua ausência porque ele se define, como o amor e outras doenças, por aquilo que ele não é.

o cheiro da chuva de ontem, a respiração ruidosa dos outros, a cortina que encosta áspera em seu rosto quando bate o vento: no escuro, o lugar de tudo é dentro e evitar anoitecer é como adiar a morte com a morte.

eu penso assim, que se existirmos profundamente no escuro, nós nunca mais deixaremos de existir.

{vazio}

Edward Hopper - Nighthawks

vazio (va.zi:o) adj. / s.m.

  1. (adj.) Que não está ocupado nem preenchido por coisa alguma; desocupado; desabitado.
  2. Destituído de sentido, de substância.
  3. (s.m.) Espaço sem nada; vão.

consideramos vazios os continentes das coisas invisíveis ou das coisas sem importância. consideramos vazio o que não nos preenche. quando tudo está lá mas você não se encontra. a ausência. lidamos apenas com o vazio relativo pois não suportaríamos o vazio absoluto.

os vazios cotidianos passam, acho que o verdadeiro vazio não tem volta. vazio é o depois da morte, é o nada no espaço, sem ar. é, ainda, outra coisa; impronunciável.

uma vez eu beijei uma pessoa morta e essa é minha imagem do vazio.

{universo}

Dust of the Orion Nebula - NASA

universo [é] (u.ni.ver.so) s.m.

  1. Conjunto de todas as realidades criadas; mundo.
  2. Conjunto de todos os sóis, planetas, satélites, astros e asteróides do espaço; cosmos.
  3. A terra habitável; o planeta Terra.
  4. Toda a sociedade; todo o gênero humano.
  5. Um todo composto de partes, harmonicamente dispostas.

o universo é o lugar de todas as coisas: das que existiram, das que existem, das que vão existir. o universo é o lugar mesmo das coisas que nunca irão existir, pois elas só podem não existir no universo.

aqui – de onde escrevo – nascem as estrelas, os rios, os homens. todas as guerras, as histórias de amor, as maldições, os milagres. tudo o que foi construído, foi construído aqui. toda estrela que cai, cai aqui. todos os livros, os labirintos, as ideias, os jardins, os meteoros, as salas de espera. tudo o que todo mundo já sentiu. tudo de que todo mundo já desistiu. todas as palavras pronunciadas cintilam em uma poeira fina e eterna, aqui.

o universo talvez seja infinito e eu talvez nunca compreenda o que é ser infinito. eu falo do universo por falar.

 

ps: este é um vídeo lindo, pra assistir bem grande, à noite, no escuro.

{tempo}

the time you enjoy wasting is not wasted time. - oh, my. - tumblr para não esquecer - o jardim branco Untitled (Perfect Lovers), 1991 - Felix Gonzales Torres National Geographic 2011 photo contest - by Simon Belham

tempo (tem.po) s.m.

  1. Medida de duração dos seres sujeitos à mudança da sua substância ou a mudanças acidentais e sucessivas da sua natureza, apreciáveis pelos sentidos orgânicos.
  2. Uma época, um lapso de tempo futuro ou passado.
  3. A época atual.
  4. A idade, a antiguidade, um longo lapso de anos.
  5. A existência humana considerada no curso dos anos.
  6. Época determinada em que ocorreu um fato ou existiu uma personagem (com referência a uma hora, a um dia, a um mês ou a qualquer outro período).
  7. Ocasião própria para um determinado ato; ensejo, conjuntura, oportunidade.
  8. Sazão, quadra, período próprio de certos atos, de certos fenômenos, da existência de certas qualidades.
  9. Estação, quadra do ano adequada a certas fases da natureza e aos trabalhos que delas dependem.
  10. Estado meteorológico da atmosfera; vento, ar, temperatura.
  11. Horas de lazer, horas vagas.
  12. Delonga, dilação, prazo.
  13. Gram Flexão que indica o momento de ação dos verbos.
  14. Mús Cada uma das divisões do compasso.
  15. Mús Movimento com que se deve executar um trecho musical e que se indica por meio de determinadas expressões.
  16. Metrif As diferentes divisões do verso, conforme as sílabas e os acentos tônicos.
  17. Mec Quantidade de movimento de um corpo ou sistema de corpos, medida pelo movimento de outro corpo, supondo-se que os dois movimentos são proporcionais.

o tempo é o acúmulo de pequenas frações de si mesmo. nele nascem e morrem os amores, se perpetuam as ideias brilhantes e os grandes horrores, se apagam as memórias da dor, se abandonam as palavras ásperas. dele se alimentam o esquecimento, a saudade, a espera. ele suaviza as montanhas. nele, e só nele, se existe.

enquanto os impérios caem e os deuses nascem, a xícara de chá esfria na mesa da sala de estar. porque o tempo é infinito – majestoso e complexo – mas é também pequeno, ordinário, das coisas simples que pertencem aos dias. o tempo de um abraço, o passo da respiração, o tempo dos lençóis ao sol, o tempo que se tira de uma coisa para dar a outra. os segundos antes de negar o amor. o movimento dos planetas. esperar ferver a água do café.

o tempo é o que continua a existir antes e depois de qualquer coisa.

o tempo tem mesmo sido impassível e até um tanto quanto indelicado comigo. por isso não tenho estado aqui e peço desculpas.

{saudade}

my elisa, oh pioneer!

saudade (sa:u.da.de) s.f.

  1. Sentimento provocado pela ausência, perda ou lembrança de alguém ou algo.

saudade, como não poderia deixar de ser.

o que eu entendia sobre a saudade era que nunca se entra duas vezes no mesmo rio: porque o rio é outro; porque você é outro.

o que eu nunca havia entendido era a saudade de você sem o rio. de quando o rio também já não há e não importa se você é o mesmo ou se você é outro ou se você mais nada. não importa você: importa o rio.

parece pesado mas é só a vida. são as correntezas. saudade é uma coisa que não se alcança.

não consigo admitir alguém que exista sem saudade no dicionário.

{resignação}

resignação (re.sig.na.ção) s.f.

  1. Ato ou efeito de resignar(-se).
  2. Submissão à vontade de outrem ou aos desígnios do destino; conformação, aceitação, renúncia.
  3. Demissão voluntária de um cargo; exoneração a pedido.

nestes últimos dias, muito tenho tentado aprender sobre resignação. entendi até que, em alguns momentos, a resignação é um ato de amor. entendi, vendo uma história linda adormecer pra sempre em meus braços, que a gente se curva diante de uma dor maior que a nossa. com respeito.

mas agora não quero deixar mais ninguém ir. agora não entendo mais nada sobre resignação. agora rejeito a resignação.

resignação é uma coisa que não se aprende de uma vez por todas.

 

deixo aqui uma pequena homenagem, muita saudade, a fazendinha e meu amoroso protesto contra os dias difíceis.

{quase}

quase

but the kitchen sink - tumblr baubauhaus

quase (qua.se) adv.

  1. Não completamente, mas faltando pouco para isso.

o dicionário hoje está sucinto e eu não:

  • o cheiro de bolo no forno;
  • quando, do alto da estrada, se avista o mar;
  • quando parece que se vai morrer de amor e não se morre;
  • tomar um fôlego curto, sonoro, profundo, e desistir. e deixar no ar o cheiro das coisas que não foram ditas por um triz;
  • as últimas páginas de um livro;
  • tentar se lembrar de algo que está sempre a milímetros do alcance da memória;
  • rasgar uma carta escrita e nunca enviada;
  • o primeiro cigarro de um dia em que se decidiu parar de fumar;
  • um beijo no canto da boca;
  • o momento em que se desiste de alguma coisa pra sempre;
  • turbulências;
  • quando você chega em um lugar e sente apenas o cheiro da pessoa que acabou de sair;
  • os milionésimos de segundo em que algo parece fazer perfeito sentido antes de não fazer sentido algum;
  • dormir no final do filme;
  • os amores interrompidos;
  • o olho quando começa a arder um pouco, segundos antes de lacrimejar;
  • sentir o vento de alguém que atravessa a rua em sentido contrário;
  • estar adormecido sem dormir;
  • precipícios;
  • noventa e nove vezes qualquer coisa.